A pandemia e o medo: a necessidade de se reconectar com as perdas para não se anestesiar
- Fernanda Travassos-Rodriguez
- 4 de jul. de 2020
- 3 min de leitura
Atualizado: 5 de jul. de 2020

Durante a pandemia, guardei meus mais preciosos bens (meus filhos de 11 e 9 anos) e montamos um universo em casa. Home-office, consultório online, homeschooling, academia de ginástica, instrumentos musicais, arte.... Dispensamos nossos funcionários recebendo os seus merecidos honorários e por considerar que somos privilegiados, pudemos ficar fechados numa bolha por exatos 120 dias.
.
Foram dias de extremo aprendizado. Autonomia, cooperação, compartilhamento de ansiedades, crescimento emocional e coesão familiar.
Não faltaram apreensão e tristeza pelo que víamos pelas lentes da televisão, mas seguíamos tentando tirar o melhor de tudo isso. Aprendendo algo, tentando ver os filhos, a casa e o trabalho de um outro ponto de vista. Entendo que aos poucos algo dentro de nós se anestesiou, o impacto do inimaginável quando vem de forma crônica estressa, mas somos seres extremamente adaptáveis e, portanto, conseguimos seguir firmes. Ajudamos à distância, falamos com aqueles que amamos à distância e continuamos.
.
Hoje foi o dia de ver, não pelas lentes do telejornal, mas pelas próprias, como está o mundo lá fora. Com muito cuidado, receio e planejamento (sim, sou extremamente conservadora quando se trata de saúde), eu e meu marido embalamos “à vácuo” as nossas crianças para levá-las ao carro. E de dentro do carro tentamos reconectar com um mundo que não víamos há praticamente 4 meses.
.
Não sei se por ser um dia frio, a realidade das ruas do Rio de Janeiro pelas nossas lentes, era bem diferente das vistas pela TV. Seguimos do Leblon até o Recreio dos Bandeirantes. Na volta passamos por Ipanema e Lagoa. As ruas vazias (de carros e pessoas). Um dia cinza. Literalmente cinza. Bateu uma “bad”. De novo parecia estar em um filme de ficção e os meus olhos tentavam se adaptar ao cenário pós-apocalítico do tal dia cinzento.
As poucas pessoas na rua andavam de máscara. Nos sinais ao invés de vendedores de balas, vi pedintes. A maioria das pessoas de máscara estavam, ou se exercitando, ou vindo claramente de mercados, pois carregavam sacolas.
.
Enfim, deparamo-nos com um aparente engarrafamento... mas não era... fomos parados em uma blitz. A polícia pediu que abríssemos as janelas e conferiu que estávamos todos de máscaras. Estranhei - estava no Rio mesmo? Estava numa experiência enviezada? Foi tudo pelo dia cinza e frio? Não sei.
Olhei para as muitas lojas e restaurantes fechados. Senti um aperto. Bateu, pela lente dos próprios olhos, a dor novamente. Se em casa, vendo os jornais a raiva sobressaía, visto que ninguém parecia cumprir o isolamento social, prejudicando a queda da curva de transmissão; na rua o sentimento foi outro: tristeza. Fiquei reflexiva.
.
Voltamos para a “bolha”, mas a minha realidade já não é mais a mesma depois dessa experiência. Talvez ainda houvesse aqui no meu peito, no fundo, no fundinho, uma negação. Talvez ainda, de forma irracional, tentasse manter manter intacto o mundo que deixei lá fora no dia 13/03/2020. Voltando a mim mesma, cansada por muitos estímulos visuais e emocionais, resolvi escrever com a esperança de digerir. De processar o horror dessa tragédia humana. Foi importante ter saído, foi importante reviver os primeiros impactos que tive com a pandemia.
.
Sair de casa (de forma segura) me chacoalhou, me tirou da anestesia causada pelo processo crônico e me deu vontade de agir. Meu intuito aqui é sacudir você também. É tirá-lo da “bolha” que esteja, mesmo que seja fora de uma “bolha”. É pensar que precisamos seguir com perplexidade e não banalizar as mortes e perdas. O medo, por ser uma emoção extremamente desconfortável, causa esquiva no ser humano, com muita frequência. Faz com que a gente, para se afastar do desconforto, se desconecte da emoção ou da situação vivida. No entanto, agora precisamos continuar ajudando aqueles que perderam o sustento neste período tão duro. Precisamos envolver o mundo, afetar as pessoas para que haja saúde mental para além dos exercícios físicos (tão fundamentais neste momento). Precisamos mais e mais de conexão humana. E só isso pode nos tornar capazes de sermos pessoas melhores.
.
E logo na chegada em casa conectei em um pocket show virtual do CMAA, visto que a minha filha participou cantando. Foi uma hora de música, lindas vozes e várias gerações de músicos que fizeram com que eu me emocionasse justo pela conexão. Senti o calor da esperança no peito, com os olhos marejados. Sim, a conexão humana, mesmo que pela tela, nesse momento, superou todas as minhas expectativas. O show foi emocionante e tão cheio de calor humano quanto o presencial. Sim, fiquei certa de que vamos passar por isso. Mas agora, neste minuto, precisamos nos afetar.
Vamos lá? Conecte-se!
Fernanda Travassos-Rodriguez
#interacaoclinicadepsicologia #emocoesnapandemia #conexaonapandemia #paisefilhos #quarentenacomfilhos
Comments