Começo esse texto explicando, antes que chovam críticas, que não se trata de uma comparação entre situações tão diferentes. A minha ideia foi, apenas, de tentar tocar e sensibilizar o leitor, usando como metáfora a pandemia, já que é um assunto de grande magnitude e que todos ao redor do mundo estão vivendo, sobretudo quem vive no Brasil neste 2 de abril de 2021.
No que diz respeito ao autismo, talvez seja impossível, para os seres humanos, ditos típicos, alcançarem a vivência do autista e da família que tem um autista.
Eu mesma, que vivo o autismo 24x7, profissionalmente, como psicóloga e pessoalmente, com a maternidade atípica, não consigo dimensionar a experiência de viver na pele do um indivíduo com autismo, mas tento diariamente e continuamente fazer com que o bem-estar destas pessoas, na vida, seja o melhor possível.
Voltando a ideia de falar sobre a pandemia para tentar tocar e sensibilizar você, leitor, vamos adiante.
Já pensou que o autista e a família do autista vivem um isolamento social ao longo de quase toda a vida, pois passados os primeiros tempos da infância, a sociedade é intolerante e cruel com as atitudes de uma pessoa autista?
Já pensou que a família de um autista, por mais poder aquisitivo que tenha, se sente, por toda a vida, dependendo do pacto social coletivo (tão necessário no enfrentamento da pandemia) e tão necessário no enfrentamento do preconceito em relação ao autismo?
Nem preciso dizer que, pelo menos no nosso país, esse pacto falha de forma expressiva e revoltante. Pense, neste instante, você leitor, como se sente na pandemia em relação a isso. Difícil, não é? Agora, transponha isso para uma experiência que perpassa toda uma existência... Os autistas e seus pais sentem-se desta forma ao longo de toda vida. O pacto social para nós quebrou quando o nosso filho saiu da tenra infância; quando os seus comportamentos começaram a se distinguir dos comportamentos dos seus pares. Nossos filhos sofrem bullying nas escolas, rejeições em espaços sociais e ainda olhares tortos em clubes, restaurantes e até em casa de “amigos”. O estranhamento e o incômodo vêm mesmo de atitudes simples. Às vezes, algumas stims (mais conhecidos como estereotipias) por não conseguirem, por exemplo, se regular pelo barulho excessivo da conversa em uma reunião ou mesmo o cheiro forte de um perfume. Nada demais, mas, nesses momentos, nos quais, simples comportamentos divergem, parece que entra um “elefante branco” na sala, o clima pesa, as pessoas se entreolham e que você não consegue se sentir bem, naquele ambiente ou pior, bem-vindo na maioria dos lugares.
A situação é mais grave quando o seu filho tem uma crise. Sim, as crises acontecem. São inundados de ansiedade e entram em colapso. Adultos autistas descrevem, estes momentos, como uma enorme sobrecarga sensorial que os desorganiza de forma profunda. Amigo leitor, você consegue se colocar na pele de um autista ou de um familiar em um evento desses, em público? Qual é a reação do entorno? O pacto social falha e é mais fácil, para quem está “de fora” pensar: eu não preciso conviver com isso... reação semelhante as que vemos na pandemia: eu não preciso me isolar... “o problema não é meu”. O grande ponto é que se perdeu a dimensão de que viver em sociedade implica que exista responsabilidade social coletiva. O ser humano deixou isso para trás há bastante tempo e isso fica muito claro no mundo pandêmico que vivemos, onde literalmente caíram as máscaras; as máscaras sociais e as máscaras de proteção.
Nada disso me deixa surpresa, vivo nesta realidade, como profissional há 25 anos e como mãe há 12. Confesso que o lugar materno fez toda a diferença e me colocou dentro do “olho de um furacão”, no qual as medidas de emergência e contenção em relação ao preconceito foram catalizadoras de uma aprendizagem muito acima da curva que os tantos anos anteriores não alcançaram. Me debrucei sobre tudo que há em pesquisa, em ciência e na prática clínica, assim como familiar.
Concluo que o autista e a sua família vivem em alerta, vivem com medo de tudo que pode acontecer. Saem na rua com medo, vão a eventos sociais com medo, vão as festas com medo. E, infelizmente, muitos, para não ter que passar por isso, deixam seus filhos em casa e sem perceber proporcionam mais e mais exclusão.
Somos taxados de heróis e essa é uma forma cruel de ninguém na sociedade acolher a nossa imensa vulnerabilidade. Vivemos em um mundo paralelo, numa “pandemia” constante que leva, principalmente as mães a estarem sempre no pico das estatísticas em problemas de saúde mental e suicídio, assim como os próprios autistas. E, neste momento, talvez, você leitor, esteja se perguntando por que escrevo essas palavras tão duras, nuas e cruas, no dia em que grande parte da comunidade autista está postando “corações azuis” e falando do amor em todas as partes. Escrevo este texto porque entendo que a minha parte na conscientização é esta! O que é uma conscientização que não envolve a responsabilidade social do leitor? Qual impacto os “corações azuis” pode ter socialmente? Na minha opinião, nenhum impacto. Sabe por quê? Porque confirma a “tese” que somos heróis e vivemos de amor e, sendo assim, exclui a necessidade de uma mobilização social.
Bem, querido leitor, vou continuar, para você, que ainda consegue me ler até aqui, com mais um pouco do cotidiano das pessoas que vivem, no Brasil, com um autista.
A vida escolar dos autistas também é difícil (não pelas dificuldades de aprendizado que possam apresentar), seja para quem faz uso do serviço público e do privado, por mais sofisticado que seja. Numa sociedade cruel como a nossa, não podemos esperar que a vida nas escolas seja muito diferente no que toca a relações interpessoais. Porém, no que toca a educação, vivemos também em uma inclusão “meia boca”. Ela é, no máximo uma “integração social”, quando, por fatores aleatórios, você tem um grupo de crianças ou adolescentes sensíveis que acolhem a criança ou adolescente autista, são casos raros, mas existem. No entanto, não há profissionais de educação especial nas escolas regulares privadas, mas, você leitor, sabia que isso é lei?
Você sabia que grande maioria dos tutores que acompanham as crianças em espaços escolares (incluindo as melhores escolas do eixo Rio-São Paulo) são pagos pelas famílias, e custam, no mínimo, o valor de outra mensalidade? Você sabia que nós pais acuados, sorrimos para essas escolas, por que a alternativa consistiria sermos demonizados e não termos vagas para os nossos filhos em lugar nenhum? Você sabia que as escolas não sabem, na maioria das vezes, fazer adaptações curriculares que os nossos filhos precisam? E sem as adaptações eles deixam de aprender coisas básicas que aprenderiam, com facilidade, em outros formatos? E você sabia que, por lei, as escolas devem prover tudo isso para qualquer aluno autista?
Uma breve pausa para explicar que também não existem escolas especiais com um padrão minimamente decente e não há opção quanto a isso. Não defendo as escolas especiais, mas coloco esse adendo aqui porque você, leitor, pode se perguntar: mas se é tudo tão ruim por que se manter neste sistema escolar? E eu te respondo que não há saída... são vidas humanas e nós precisamos do nosso coletivo: o tal pacto social tão falado ultimamente.
Vivemos uma constante pandemia. Preparamos diariamente a criança ou adolescente para ir à escola e se proteger do vírus inimigo: o vírus do preconceito.
Nos acostumamos a viver a rejeição e a constatação que aceitar o seu filho em qualquer espaço público ou privado é “um favor” e não uma lei, ou simplesmente um mínimo respeito por um ser humano. Mas nós, seres humanos, há muito tempo esquecemos de olhar para além dos nossos umbigos, dos nossos corpos, dos nossos ideais de perfeição... então como assim olhar para um outro tão “imperfeito” aos olhos estranhos...
Agora, pretendo encerrar o nosso último, porém não menos importante, tópico: o da saúde. Você sabia que poucos pediatras, dos mais bem “cotados” sabem identificar precocemente o autismo e encaminhar o bebê para intervenções que lhes deem chances de aprender um série de pré-requisitos de várias habilidades de vida, no período em que o cérebro tem mais plasticidade?
Você sabia que apesar do autismo ter sido descrito em 1943 os médicos lidam com ele como se lidassem com um vírus novo e desconhecido? Você sabia que não existem medicamentos para amenizar os desconfortos que uma pessoa autista sente? Os medicamentos para outros transtornos são adaptados para uso no indivíduo autista. E assim caminhamos...
Em relação as terapias (que estão no âmbito da saúde)... você sabia que um psicólogo (pelo menos no Rio de Janeiro) passa a graduação inteira, sem ver em nenhuma disciplina obrigatória, nenhuma abordagem para intervenção precoce ou intervenção de autistas, mais graves, baseada em evidências científicas. E que se formam usando como base para atender autistas terapias para neurotípicos que não funcionam ou podem agravar o quadro de uma pessoa autista?
Você já imaginou uma medicina sem evidência científica? Sim, não precisamos ir longe, imaginou e, provavelmente, abominou; no entanto, não há estranhamento em seguir com práticas baseadas em ideologias e não em evidências científicas (em psicologia) com pessoas que podem ter suas vidas subtraídas sem isso.
Já pensou que, de novo, mesmo com o melhor poder aquisitivo, não há tratamento disponível no Brasil, pois pessoas não se formam e se especializam nestas áreas? E, ao mesmo tempo não há como fazer essas terapias fora daqui porque elas precisam ser constantes e ter uma intensidade que não permite essa distância, além da limitação com outras línguas que pais e autistas possam ter. E lá vem mais uma sensação de “pandemia”... as famílias de autistas estão numa eterna “fila da vacina” porque não há na iniciativa privada, nem com todo o dinheiro do mundo, um tratamento como deveria ser? E na iniciativa pública obviamente também não... (para não ser injusta vemos algumas boas iniciativas começando a surgir em algumas capitais, principalmente em São Paulo).
Sinto com essas palavras desanimar muitos pais que não entendem da área e que despejam rios de dinheiro e investimento afetivo-emocional em terapias que farão pouco diferença na vida de autistas grau 2 ou 3 (moderados ou severos).
Sim, nos vivemos exaustos! Assim como você, entramos numa “pandemia” diferente, também sem escolha, e não venham dizer que “somos especiais, escolhidos” ou que os nossos filhos são “anjos”, pois entendo tudo isso como uma forma perversa da sociedade não te estender a mão e te ajudar. “Heróis” e “anjos” não precisam de ajuda, de leis sendo cumpridas, muito menos de terapias intensivas.
Mas nós, sabe leitor, nós seguimos exaustos, vulneráveis e mesmo assim incansáveis por falta de opção.
Nós precisamos de todos vocês que ao nosso lado, e posso citar algumas pequenas atitudes que fariam muita diferença. Por exemplo: perguntar nas escolas dos seus filhos se as leis de inclusão são cumpridas, se há pessoal contratado na área de educação especial e se a escola rejeita matrículas de alunos autistas. Alunos de psicologia, precisamos de vocês também, por mais que não se interessem em trabalhar nesta área, para perguntar aos seus professores, coordenadores e diretor se, para além do blá-blá-blá intelectual, eles conhecem práticas baseadas em evidências para atendimento clínico e escolar de autistas. Perguntar se isso é apresentado ou minimamente ensinado, na sua faculdade. Há um campo de trabalho imenso aí fora que ninguém explora.
Famílias de pessoas autistas, precisamos de você, não aceitando as migalhas que as escolas te oferecem, mesmo quando você gasta o dobro ou até o triplo da mensalidade para garantir a educação do seu filho. Precisamos de vocês questionando a formação dos profissionais que atendem os seus filhos.
Precisamos de respeito, ciência e pacto social!!! Mais do mesmo, que tanto temos precisado, no enfrentamento da pandemia. Espero que, você leitor, que não tenha um autista na família, tenha conseguido se identificar com esses paralelos traçados intencionalmente para te mobilizar. Caso positivo, sinto que a minha missão foi cumprida nesse 2 de abril.
Obrigada a você meu querido leitor que chegou até aqui. Esse meu protesto não é de forma alguma uma briga. Ele é movido por respeito, amor e ética com o meu próximo, independente dele ser diferente ou não.
Fernanda Travassos-Rodriguez
Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-Rio, Certificada em terapias cognitivas e comportamentais pela FBTC e em terapia racional-emotiva pelo Instituto Albert Ellis de NY. Formada em Terapia do Esquema e membro full da ISST/NY. Formada em ACT pelo Instituto Paradigma SP. Pós-graduanda em Análise do Comportamento para pessoas neurodiversas.
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