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Eu e o autismo - o autismo e eu

Atualizado: 5 de jun. de 2020


Fui apresentada ao autismo como a maioria das pessoas da minha geração. Sim, assisti ao filme, “Meu filho, meu mundo”, ainda criança. Fiquei intrigada e com a ideia do que seria o autismo me acompanhando, ao longo dos anos. Ideia esta, pautada no estereótipo do autista clássico, fazendo flapping (quem não?).

Já na faculdade de psicologia, nos anos 90, cursei uma disciplina eletiva: psicopatologia infantil. O autismo apresentado não diferia muito daquele guardado na memória, do filme visto ainda na infância. Lembro que esta foi a primeira vez que ouvi falar de subcategorias diagnósticas como: autismo regressivo (que me deu arrepios ao longo da coluna vertebral) e autismo de alto funcionamento. Sobre o autismo regressivo meu primeiro pensamento foi: como assim, uma criança perde as habilidades já constituídas? E do alto dos meus 20 e bem poucos anos, senti empatia pelos pais. Senti que talvez fosse uma das maiores dores possíveis na experiência humana.

O outro diagnóstico que me intrigava era o “tal” autismo de alto funcionamento, que me parecia mais um termo de ficção científica, do que o perfil de um indivíduo. E lá se foi toda a graduação sem ouvir falar mais nada de autismo. Às vezes, se falava em “mãe geladeira” e “mãe esquizofrenizante” em alguma disciplina, mas nada além disso. No penúltimo ano da graduação me aventurei a estagiar num day clinic para crianças e adolescentes autistas. E de novo, eu do alto dos meus vinte e bem poucos anos, me deparava com um dos maiores aprendizados da vida. Estávamos no ano de 1994 e eu realmente me envolvi profundamente com aquelas crianças. Sei o nome de cada uma delas e guardo fotos comigo das nossas saídas terapêuticas, até hoje. Imagino como estão, sendo adultos, atualmente. Mas perdi o contato, infelizmente!

Deste período em diante, segui sempre com o autismo na vida acadêmica e profissional. Fiz meu TCC abordando o autismo e fui trabalhar com poucos anos de formada na APAE-Rio com crianças com diversos tipos de deficiências e autistas. Foi lá que eu conheci o Arthur[1]. Primeiro autista de alto funcionamento que tive contato. Ele tinha uns 4 anos em média. Entrou na minha sala e lia tudo que estava diante dos olhos, enquanto os meus olhos fitavam o menino, num misto, de perplexidade e admiração.

Daí para um doutorado que abordava o entrelaçamento da equipe de intervenção precoce, com a família e a criança com deficiência; foi um “pulo”. Acabei focando nas famílias das crianças com filhos com síndrome de Down. Precisava ter um corte na minha amostra, já que era uma pesquisa científica, mas o autismo ficou ali, no meio de tudo que era escrito, pois permeava os meus pensamentos. Sempre tive a impressão que estava me esperando para algum momento da vida, talvez um pós-doc.

O que eu nunca poderia imaginar é que o autismo chegaria na minha vida de outra forma. Por outra porta, a porta da minha casa.

Em 2008 fui mãe de um menino sonhado, esperado e planejado por muitos anos. Entretanto, pude notar os sinais do autismo nele aos poucos meses de vida (por volta de uns 9 meses). Época do surgimento da intersubjetividade primária (quando a criança começa a “triangular” o olhar). Neste momento, apesar de estar cercada de maravilhosos profissionais de saúde, a desinformação sobre o autismo era grande, e quando minhas suspeitas ficaram maiores, ninguém acreditou em mim.

Passei por um período de muita pressão psicológica, um deles, fora do país quando o autismo parecia já gritante, mas “ninguém” percebia. Um sofrimento terrível para uma mãe que sabe que o desenvolvimento do seu filho não vai bem.

De volta ao Brasil, levei ele na mais que querida Carla Gikovate (neuropediatra), com quem já havia trocado muitas figurinhas antes de pensar em ser mãe. Ela foi sensível e confirmou as minhas suspeitas, no entanto, o diagnóstico não foi fechado ali. Ele tinha apenas 1 ano e meio e muitas reviravoltas poderiam acontecer no desenvolvimento. O que foi decidido ali é que começaríamos uma intervenção precoce imediata (o que sempre deve ser feito, mesmo quando não há diagnóstico) e que os profissionais que sabiam, minimamente fazer isso, eram pessoas mais jovens do que eu, com menos experiência profissional e a gente contava nos dedos de “uma” mão, quantos capacitados tinham no Rio de Janeiro para essa empreitada.

Minha família estava desnorteada. Todos achavam que aquela consulta neuropediátrica acabaria com as minhas suspeitas. Eu lá bem no fundo, tinha esperança de estar enganada, mas coração de mãe (sabe como é, né?)... No fundo senti alívio, pois até então, eu parecia viver numa "realidade paralela". Juntamos os cacos e escolhemos uma, entre 2, terapeutas disponíveis. Começamos a intervenção que seria uma longa jornada de vida. E ao longo desta jornada venho me reinventando mil vezes como pessoa e profissional.

Depois do meu filho, tive outra filha (2 anos depois) com desenvolvimento típico e isso tudo me fez ter um olhar muito “afinado” e “milimétrico” em relação ao desenvolvimento humano e seus marcadores. E se juntou aos estudos acadêmicos e percurso profissional que eu já tinha.

A esta altura o meu consultório se voltava praticamente para o cuidado, psicoterapia e acolhimento de pais de autistas. Eles me descobriam pela internet e vinham pela sensação de conforto e empatia que uma relação terapêutica assim, poderia prover. Na outra ponta foram surgindo, muitas crianças, com todo o tipo de desenvolvimento que podemos pensar: típicas, atípicas e alguns casos difíceis que, grande parte das vezes, tinham famílias frágeis e machucadas por trás.

Se eu hoje pudesse reescrever a minha tese de doutorado, faria sem pestanejar. Muitas coisas mudaram de lá pra cá. Talvez a mais forte delas tenha sido a oportunidade de viver tanto a maternidade atípica, quanto a típica. Porém, o que mais me inquietava desde lá, até aqui, é a falta de publicações e de profissionais psicólogos que deem suporte e acolhimento de qualidade (e baseados em evidências científicas) para todo o conjunto “família” que tem um filho com qualquer tipo de desenvolvimento atípico. Via de regra, quem atende um autista, principalmente nos padrões “ouro” dos tratamentos, só inclui as famílias, para breves devoluções, relatórios ou, na melhor das hipóteses, treinamento parental.

O que eu vejo na minha clínica, ao longo de todos esses anos, é que em parte, esse trabalho “enxuga gelo”. Vejo crianças sendo abusadas psicologicamente por pais, aparentemente “bons”, porque eles não têm mais saúde mental, pois não sabem lidar com os filhos. Vejo crianças negligenciadas nas mãos de funcionários domésticos, porque os pais não têm saúde mental, nem energia. Vejo pais, desfazendo o trabalho dos terapeutas, porque não tem nenhuma habilidade para dar conta de um tipo de interação difícil e desafiadora que pode ser a de uma criança autista em um meltdown. Claro, que também vejo situações boas e famílias envolvidas nos cuidados dos filhos.

Meu ponto é que as famílias que supostamente parecem “falhar”, não fazem isso porque não querem tentar. Essas famílias simplesmente não tiveram chance. Elas não tiveram suporte terapêutico. E, portanto, a pergunta que me faço desde 1996 quando o tema começou a me inquietar é: por que motivo não há suporte parental de qualidade, para pais de crianças atípicas ou com deficiências, principalmente “nas Américas”? Supondo que a maioria das publicações e pesquisas acerca do tema “autismo” é oriunda dos EUA, e lá o sistema de saúde é privado e custoso, e que os pais americanos lutaram anos para que a assistência aos autistas ficasse no âmbito escolar, já que lá a educação é pública e de grande qualidade – faz sentido pensar que as intervenções em idade escolar para crianças com desenvolvimento atípico é totalmente coberta pelo sistema educacional. Em contraste o suporte relativo a saúde mental dos pais não “cabe” dentro do universo educacional e, sim ao sistema de saúde e aí encontra-se um entrave e penso que uma "primeira resposta" para questão do cuidado e saúde mental dos pais. Além disso, a ampla disseminação sobre treinamento parental (disseminada por muitos artigos científicos e pesquisas importantes) também diminuiria o custo das intervenções, visto que terapeutas, seriam “substituídos” por pais que, nestes estudos, são chamados de “coterapeutas”. Se levarmos em conta que uma terapia para um autista dentro de um padrão “ouro” é pensada na intensidade de 20 a 40 horas semanais, podemos pensar no custo de tais intervenções e contar com a mão de obra dos pais, em parte, seria "economicamente" benéfico. Para o desenvolvimento das crianças, sem dúvida o envolvimento parental, como é apresentado por meio de pesquisas, é benéfico; já para a saúde mental dos pais, não sabemos.

Bom, continuando e deixando bem claro: acho importantíssimo o envolvimento dos pais e o aprendizado dos procedimentos terapêuticos, pelos mesmos, para que possam ser aplicados no dia a dia; discordo apenas que essa responsabilidade seja “delegada” aos pais, pois isso seria, no mínimo cruel; e preciso, ainda, dizer que nem todo adulto tem condições psicológicas de prosseguir sendo “coterapeuta” do filho (além disso, existem outras muitas questões que tudo isso envolve). Portanto, toda essa “fórmula” me parece “furada” sob a perspectiva do cuidado e da saúde mental e física dos pais, apesar de existirem instrumentos incríveis no que diz respeito à intervenção precoce e ao desenvolvimento posterior da criança autista.

Concordar com isso seria o mesmo que acreditar que todas as famílias são iguais e têm as mesmas habilidades e dificuldades. E é óbvio que isso não é real. A esta altura, não sei bem como fechar esse texto, já que ele saiu com velocidade e força da minha cabeça, mas não há respostas nem intervenções prontas para os pais. Talvez meu objetivo aqui seja apenas sensibilizar os terapeutas que atuam com as crianças autistas para que pensem na particularidade de cada família. E que sempre se lembrem na profundidade de sentimentos, pensamentos e histórias que podem existir por trás de sorrisos cansados e olhares vazios. Duvide sempre da saúde mental dos pais para ter uma prática cuidadosa. Criar uma criança com autismo é uma experiência desafiadora que sobrecarrega, no aspecto psicológico, mesmo as pessoas mais saudáveis. Pode ser por noites mal dormidas, preocupações com o futuro, um metldown no meio da rua ou medo que o filho sofra, dentre tantos outros, os motivos de um estresse crônico e progressivo. Terapeuta: não deixe de pensar nos pais e nas famílias, nunca!

Para os pais, eu gostaria de dizer que: eles podem pedir ajuda, eles podem sofrer, eles não precisam ser perfeitos, eles não precisam fingir que está tudo bem. Eles devem buscar terapeutas empáticos porque nenhuma técnica está acima da relação humana que um terapeuta precisa estabelecer. Costumo dizer que terapeutas, pais e criança precisam ser um time que rema na mesma direção. E se alguém começa a remar em direção divergente, é preciso observar, entender, trocar ideias e, se necessário, transformar. Lembre-se que “a corda sempre arrebenta do lado mais frágil” e o lado mais frágil deste time, é o da criança. Portanto, sentindo turbulências no percurso, proteja sempre o seu filho.


Fernanda Travassos-Rodriguez

[1] nome fictício


 
 
 

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